Conheço o Sergio há muito tempo. Apreciadora de sua escrita, leitora de suas crônicas, encontrei em Vocabulário de memórias ausentes uma cadência diferente. Há, neste livro, um misto de delicadeza e escancaro de uma variedade de injustiças de autoria do tocar a vida e dos personagens.
A primeira leitura aconteceu na rapidez impulsionada pela ansiedade de chegar ao final do livro. A cada página, questionamentos eram acionados, apesar de, entrelinhas, um conforto fosse oferecido para abrandar o que apenas parecia ser resultado de um combinado — nem sempre gentil e atencioso — de acontecimentos.
Então, seguiram-se outras leituras. Naveguei pelo livro várias vezes, a fim de experimentar a sintonia entre o momento vigente e as mesmas páginas. De nenhuma delas retornei sem trazer comigo mais algum detalhe fisgado, capaz de ampliar a minha consciência sobre a singularidade daquelas histórias.
Os onze contos que compõem o livro registram os percalços do cotidiano e o extraordinário aprisionado entre os dentes da rotina. Em alguns momentos, pontua o tempo como um impulsionador de lembranças chegando “aos atropelos”, despindo indivíduos de sua individualidade e, então, os apresentando como guias, oferendas ou cobaias do destino. O “tempo para meditar” nem sempre chega bondoso. Há quando, entre um conto e outro, acelera partidas.
Apesar de cada conto ter sua própria identidade, o tempo, a memória e a ausência contracenam em suas páginas-palcos, porque o escritor, também músico, tende a escutar os sons que o cercam feito música: “Ali há silêncio, só pausado pela música dos bichos.”, (Voz e violão); “Ao longe, ele ouviu o riso de Marcela, música para os ouvidos.”, (Os gafanhotos atacam outra vez).
Hábil analisador dos matizes da vida, o autor se vale da habilidade de extrair beleza das cruezas promovidas pela realidade brutal, e não se afasta da dor usando o recurso de pincelar leveza onde o peso do injustificável se impõe, tampouco abre mão das sutis alegrias “de hoje” a visitarem seus personagens.
Nos contos que comungam a hostilidade, Sergio expande a beleza narrativa: o grito de quem se nega a ser humilhado, a menina regente de uma orquestra imaginária, o bem desonrado na pele do padre. Ao espreitar fins, cria cenas de pontuar durações, como a do escritor registrando seu encontro com a morte, ou as crianças que, durante as férias, criam um portal, e então, são arrancadas do universo lúdico ao assistirem o avô a ensinar bons modos ao cachorro, memória que carregaram vida afora.
Em muitos momentos, a contundência da narrativa é amparada por uma troca de perspectivas entre o real e o imaginado. A fragilidade tece uma rede de proteção destinada a romper em sintonia com inevitáveis. Ao descortinar vazios, o autor se coloca à disposição dos personagens, organizando a arquitetura da ausência: “Também tentou expulsar a dor, sem sucesso. Perdeu-se no vazio da parede.” (A mais linda do baile).
Em “Vozes”, Sergio expõe um cenário no qual cabem as buscas amiudadas, as conquistas dizimadas e as sombras a margearem a perda de si. Neste conto, a dolência se faz presente enquanto tece um desfecho de esquecimentos acarretados por memórias enterradas, não por escolha, mas para abrir espaço para as próximas. O personagem conhece o antes daquela mulher, o tudo que a compõe, e, parte dele, vivenciaram juntos. Apesar da tristeza inegociável, e da saudade prefaciada antes da partida, acessa o amor e o respeito para acompanhá-la na sua jornada.
Mesmo a melancolia pontuando a ineficácia dos desfechos em colaborar com o desejo de seus personagens, o livro visita o aprazimento em forma de lembranças abarcadoras do que, em algum momento, reconhecemos como felicidade. Também apresenta um catálogo de despedidas geradas por escolhas, urgências e mudanças, nem sempre definitivas.
Sergio Geia conduz a criatividade de sua orquestra literária sob a batuta de verdades que cabem na biografia de muitos. Assim Vocabulário de memórias ausentes começa, se desenrola e termina.
Carla Dias