Quem, onde e adeus
Por Carla Dias
Reunir em uma antologia narrativas de vários autores é sempre garantia de diversidade. Talvez esta seja uma boa forma de exercitarmos, leitores ou escritores, a capacidade de não nos prendermos às certezas, já que elas, ao menos no campo da leitura pessoal de determinadas situações, apenas barram a possibilidade de estarmos equivocados ou de aprendermos a lidar com as nossas questões, em busca de uma resolução favorável.
Dez escritores falam sobre assuntos inerentes ao ser humano: fragilidade, mesquinhez, empatia, indiferença, alegria, medo, entre tantos outros temas compartilhados na sua definição, variados na forma de cada um lidar com eles. Ainda que alguns fatos pareçam ao leitor distantes, por experiência ou proximidade geográfica, é inevitável se conectar com as histórias deste livro.
Há conto que destaca lugar se apropriando de pessoa: “Ele foi entronizando uma certa cor sem descrição, uns cheiros ainda indefiníveis, uns sons não reconhecíveis e os olhares de pessoas desconhecidas. E um certo Recife foi se impregnando em seu cérebro.”(Quando a maré encheu, Cesar Casella); “Brasília crescia incontestável. Inóspita. Seca. Ardida. Cobrava suas oferendas em forma de suor, dor, sangue, amores perdidos.” (Inabalável, Victor M.).
Os acontecimentos chegam em camadas, graças às nuances de cada um. No entanto, também é de chegar carregando a violência da privação, da miséria, da indiferença, vetando a capacidade de considerar saída, opção, ajuda. “Henriqueta, submissa, mulher amansada, domesticada, saía do confessionário menos mulher, menos amada, mais pecadora. Ela tentou de tudo. Por fim, engravidou de novo. Quarta vez. Vingaria?” (Mergulho, Jaque Monteiro).
As narrativas seguem caminhos estreitos, nos quais também desfila o herói de ocasião, que se destaca por fazer o certo, o justo, o determinado por lei, o que não deveria ser considerado ato de heroísmo: “Um de seus fãs se aproximou e depositou a medalha em seu pescoço, voltando em seguida à sua posição original, para admirá-lo ainda mais, sempre de longe. Eis o segredo da admiração: distância.” (A glória do cão, Marcos J. Custódio).
Nem todos os sonhos coordenam viagens internas em busca de contentamento. Alguns são pontos de partida para a observação aprofundada da desventura: “A senhora já sonhou de olho aberto? Como é isso, Conceição? Um sonho comprido. Uma criançada num terreiro sujo, uma mulher estendendo roupa no varal, parecia ser a mãe de todas aquelas crianças.” (Conceição, Ana Raja); “Justino, sabido nas letras e nas contas, queria ser doutor. Daria esse gosto pra seu Chico, certamente. Mas, ironia d’O-de-Lá-de-Cima, a saúde nunca acompanhou o sonho dele e do pai.” (Tininho e Tiririco, Daniel Rodrigues).
Há momentos, neste livro, em que a mente prega peças e abre espaço para uma leitura reflexiva sobre se perder de si mesmo: “Ouviu a patroa falando muito e rindo alto, como se estivesse acompanhada, e achou melhor dar uma volta no quarteirão para entrar em casa no horário combinado.” (Senhora dos solitários, Irene Vucovix); “O Cartolão se divertia em simular que não notava que vestia andrajos e que havia copiado todo o visual de um personagem de um programa televisivo de sucesso nos anos oitenta. Só faltava a casca de melancia na cabeça.” (O Cartolão, João Wilson Savino Carvalho).
O flerte com o tempo raramente coincide com a expectativa: “Joguei água fria no rosto e voltei a encarar o meu reflexo. Eu estava diante de mim mesmo, e, por alguns segundos, achei que fosse outra pessoa, alguém que havia conhecido há muito tempo.” (O retrato, Ricardo Coelho); e, às vezes, atrapalha a chegada ao destino final: “Agora, em companhia do séquito, buscava a boa terra dos velhos, onde haveria de sepultar o pai. Mas não havia quem lhes revelasse o exato ponto onde deviam deixar o morto.” (A morte como se sempre, Dênis Rafael Ramos).
Quem, onde e adeus é um escoadouro de vivências, e leva o leitor a se render à intimidade com os personagens que as vestem.