Alexandra d’Orsi, ex-aluna da Unicamp, se dedicou à área editorial a maior parte da vida. Teve seus primeiros contos publicados na década de 1980. Foi professora de português para estrangeiros no Brasil e na França, onde esteve para cursar um DEA e também em busca de seguir os passos do poeta Arthur Rimbaud. Hoje vive num Brasil em que o melhor a fazer, seguindo os conselhos de Voltaire, é cultivar o próprio jardim.
Em seu livro de estreia, Alexandra d’Orsi apresenta dezoito contos que combinam lirismo, dor e ternura. As narrativas exploram solidão, amor, transcendência e fragmentos do cotidiano, sempre guiadas pela sugestão e pela força da linguagem poética.
Entre imagens intensas e atmosfera aberta, a autora transforma a experiência humana em literatura delicada e inquieta, em que dor e amor se entrelaçam. Natureza, espiritualidade e inquietações sociais atravessam os textos, compondo um mosaico de sensibilidade e originalidade.
Dos meridianos de Eva é um livro singular, maduro e luminoso, que marca com força a ficção contemporânea brasileira.
Dos Meridianos de Eva. Contos? Fragmentos? Um turbilhão criativo? Eis nessas páginas um arcabouço em que “narrativas” não se encerram em si mesmas. Elas são a tessitura de um todo. A vida intrincada delas é anunciada como por um arauto em três ocasiões: “Conto parecendo prefácio”, “Conto não-interfácio”, “Conto parecendo posfácio”. Evoluções de uma enfermidade? A loucura subjacente, evoluindo, vestida em temas variados, estranhos e sombrios, conduz o leitor a uma vertigem de tirar o fôlego.
O inusitado das frases remete às sintaxes surpreendentes e inolvidáveis da lendária Clarice Lispector, embora aqui definitivamente mais escuras. Esses assim chamados contos, ainda de forma muito singular, se condensam no sumário através de poesias que são como instantâneos do essencial em cada um deles.
A insanidade que caminha como elo pelas páginas é a elocução de uma prosa exuberante em poesia de sombras, profunda na sua complexidade. Dores de alma viscerais, ímpares, vórtice irremediável para um viés deprimente e assustador.
Vale lembrar, como queria Virginia Woolf, que sentimentos extremos nunca se desvinculam da loucura. As cordas dos meridianos dessa Eva tocam em si bemol (tonalidade de fundo alertada desde o “Conto parecendo prefácio”) uma canção melancólica, ou algo assim muito forte, triste, fatal mesmo: um enfrentamento para o que resvala a loucura em cada um de nós.
Privilégio ler Alexandra d’Orsi, ou seus meridianos, que demoraram tanto para vir a público.
Dor e ternura, festival de balé
Pode ser óbvio e repetitivo, mas julgo necessário lembrar que a paciência, um dos primados de Kafka, é a maior virtude de quem escreve. Osman Lins considerava a paciência a “regra de ouro” do escritor. Não se torna bom ficcionista ou poeta de um ano para o outro, em cursos de verão nem em conversas de bar. Escritor de verdade não tem pressa. Alexandra d’Orsi, nome literário de Maria Alexandra Orsi Cardoso de Almeida (que não é parente do prefaciador, um ex-colega de trabalho), sabe muitíssimo bem disso tudo. Há mais de vinte anos, li a primeira versão deste Dos meridianos de Eva, que já se apresentava como uma original e cativante coletânea de contos. Desde então, a autora, munida de paciência, talento e humildade, sem pressa alguma, retrabalhou os textos, criou novos e chegou ao belo livro que o leitor tem em mãos e que poderá degustar nas próximas páginas. Um jardim do verbo repleto de serenas e inquietas flores. Balé de dor e ternura.
A maioria dos dezoito contos deste volume tem como tema a solidão de que nos fala o irlandês Frank O’Connor (1893-1966) em The Lonely Voice (1962). Ao contrário do romance, diz O’Connor, o conto não tem herói; traz a população submersa, excluída da sociedade “normal”. Ao mesmo tempo, os textos de Alexandra seguem o que preconiza Ricardo Piglia em Formas breves (Cia das Letras, 2004, trad. José Marcos Mariani de Macedo), um conto contém duas histórias: “um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário. [...] O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma história contada de um modo enigmático”.
Raramente houve na literatura brasileira uma estreia tão madura como a de Alexandra d’Orsi, escritora pronta. Difícil acreditar, mas este surpreendente Dos meridianos de Eva é o seu primeiro livro. São contos de dor que cura a alma, textos por vezes aveludados, de aveludada ira, doces de inquieta e altiva feminilidade e, ao fundo, parecem soar os acordes de um violino, ora calmo, ora agitado, executado por um músico virtuoso. A música paira nos textos. E o tom poético, no ritmo, léxico e na sintaxe, modula todos os contos, com imagens, frases e palavras inusitadas. A autora vê sempre as coisas simples ou complexas por um ângulo artístico e cria palavras divertidas, como a que significa enorme. E este é um ponto fundamental: no seu texto não há lugar para o lugar-comum.
A partir da epígrafe, contundentes versos de W. H. Auden, a poesia já se faz presente. Também em muitos dos textos que inspiraram as narrativas, como se pode ver no índice, com perfeição nomeado “Recital de contos”. A leitura é a semente; o texto, o fruto, diria Machado de Assis. Que o leitor saiba desde já: não se trata de lirismo inocente, vencido, a lua dos apaixonados etc., de arte pela arte, mas sim da poesia que transita pela solidão e a dor humanas. Dor sobretudo d’alma. “Dor vertiginosa”, como diz a narradora em “Uma miragem”. Se “a dor destrói um mundo... constrói outro” [...] “dor e depois outra vez vida” (“Incêndio da alma”). A palavra dor surge pelo menos vinte vezes nos contos. No entanto, amor passa de trinta, beira os quarenta. Solidão é palavra que não aparece (a sugestão é mais forte do que a nomeação), mas o insulamento habita quase todas as histórias. E nestes tempos de desespiritualização, de ausência de fé, nas alusões ao sagrado a escritora como que nos alerta: a existência humana não é antropocêntrica, mas teocêntrica. A transcendência ilumina o livro — as palavras alma e Deus, com cerca de quinze ocorrências, constituem a flama de boa parte dos contos (alguns assemelham-se a uma prece).
Baudelaire lembrava que “o sorriso e o pranto são, como formas nebulosas do rosto humano, uma insuperável manifestação de sua espiritualidade”, em citação de Walter Benjamin em Passagens (Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007). Alexandra capta a transcendência e ainda a essência humana, a ligação com o divino, a sede de amar. Nos contos, exala o amor latente, apreensivo, inalcançável. Hoje já se sabe que não apenas a vida humana, mas a natureza inteira (plantas, animais, rios, mares, florestas etc.) é sagrada. Como toda boa literatura, Dos meridianos de Eva está prenhe de elementos da natureza (há até um conto intitulado “Sagrado mar em si”), bem como de estilhaços de dor, de sofrimento, de solidão, trajetos de conflitos, com lampejos de esperança. A preocupação social também se faz presente. “O amor e a fome governam o mundo”, diz uma personagem de “Sobre o primeiro amor”, conto de Máximo Gorki. Dos meridianos é um texto de porcelana fina, dúctil e indócil a gêneros literários. Lemos poesia ou prosa aqui? Trata-se mesmo de contos ou de romance multifacetado? Singularidade, luminosidade na palavra tensa.
É preciso ainda dizer: além de ternura e transcendência, há também perigo, medo e paixão nessas narrativas, como se a autora fizesse transfusão de luz para o leitor — mesmo que seja um claro buscado na escuridão. E com que ardor, com que paixão, a escritora se entrega ao texto. Ela não teme os abismos da existência; mira-os, destemida. Todavia, o que impulsiona a forma e a história de seus contos não é a ação, mas sim a força da sugestão, a carência de corações sofridos, o latejar da dor (porém, os personagens vivem em busca de alguma alegria), um sentimento que o fluxo da frase lapidada, brilhante de nova, reflete a forma e se expande. Pura perplexidade. Todo texto, sendo literatura, almeja dialogar com o leitor. Não um diálogo pacífico, quase monólogo. Mas o que atiça a sensibilidade e a mente de quem lê, exige atenção e empatia. Diálogo real.
Nada do que Alexandra trata nos contos está alheio à vida real, ao cotidiano de todos nós. Contudo, somente alguém dotado de alma sensível e aguda capacidade de observação consegue transformar instantes e fatos, à primeira vista prosaicos, em arte e poesia que questionam o que o homem faz na Terra. A introspecção da narradora, mesmo muitas vezes em fuga, está conectada com o coletivo, a começar pela família. A exemplo de obras consagradas de contos, como Sagarana, de Guimarães Rosa, Laços de família, de Clarice Lispector, e Nove, novena, de Osman Lins, Dos meridianos de Eva não é título de nenhum dos textos do livro. E os principais meridianos parecem passar pelo coração e pela cabeça da narradora, em geral inominada e em terceira pessoa.
Se os contos do volume são meridianos, a extensão deles, de meia página, duas ou três páginas até quase vinte, talvez corresponda a alguma parte específica do corpo de Eva, mulher que doa vida, mais larga ou estreita, assim como os meridianos da Terra, e de acordo com as características dos pontos que atravessam. Esse é tópico para futuros estudiosos deste livro. Sobre conto, gênero dotado de estrutura e conteúdo, vale a pena repassar alguns conceitos ou comentários. Alexandra não se prende a modelos do gênero, ainda que, como é natural, suas histórias tenham enredo, poucos personagens e se centrem num conflito determinado, contenham clímax e desfecho (simultâneos, com frequência). O espaço é quase sempre apresentado pela ambientação, apuro do texto. O tempo na narrativa é uma festa: cronológico, psicológico, histórico, mítico, cíclico, linear, não linear. E nem sempre as histórias têm início, meio e fim tradicionais.
Simplesmente porque, a exemplo de Clarice Lispector (que reverbera neste livro), Alexandra escreve sobre sensações, também na sua obra o forte é a atmosfera, e não a trama. “O conto de atmosfera contém, assim, narrativa aberta, cuja conclusão depende do leitor, que sempre pode descobrir mais de um entendimento aceitável”, escreve Ivan Teixeira em O altar & o trono (Ateliê Editorial/Editora Unicamp, 2010), monumental ensaio sobre “O Alienista”, de Machado de Assis.
Antes de iniciar a apreciação das joias de Dos meridianos de Alexandra, vale a pena apresentar uma ligeira amostragem da riqueza que o leitor encontrará nas páginas seguintes. No “Conto parecendo prefácio”, que abre o festival, a autora como que explica, por meio de uma personagem que trabalhava num hospício, a sua trajetória em busca do “balé da razão”, o que não dá certo. Está claro o paralelo com a arte da narrativa. “Tudo o que contar é o que eu acho”, diz a narradora. Aberta a temporada de perplexidade.
Conforme promessa da narradora, talvez alter ego da autora, já encontramos a seguir “Uma miragem”. Aqui há um dos raros personagens nomeados: Pinson, “o homem amado em que ela se diluiu um dia”. (Pinson, fora do conto, é um pássaro de canto agradável.) No caminho em busca de enconto/encanto, “roendo as unhas, o cálcio do próprio corpo”, a moça colhe “cardos e ervas danosas”. (Cardos são plantas espinhosas.) Vejam que dor: “Se havia flores não eram para ela, ou não estava mais em seus olhos a luz transparente de decifrar delicadezas”. No entanto, num dos textos seguintes, “A feia e a flor”, uma das mais longas narrativas do volume, a menina conversa com uma flor, uma orquídea. Se “as rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam”, na bela canção de Angenor de Oliveira, o Cartola, a orquídea de Alexandra d’Orsi fala com a criança com suas “línguas-pétalas”. O final do conto é da mais sublime poesia — mas tenham paciência, não saltem, saboreiem texto inteiro, o fim só tem gosto com a degustação completa.
Há mais, muito mais. Estamos apenas no início. Há muitas maravilhas por vir. Por exemplo, em “Da janela que verão” lemos: “Ela então balançava-se à rede hoje (o hoje da história), igual a navio num mar que avançasse janela adentro, janela ao infinito, janela adentro, janela ao infinito”. É ou não é poesia? Mais um pouco: “Seu coração doeu o peito” [...] “sua alma no corpo ficou um sino transtornado”. Alexandra escreve com o coração na ponta dos dedos.
A abertura de “O canto do silêncio” é primorosa. No texto seguinte, o curto “Não-conto interfácio”, a narradora encontra consolo em Alberto Caeiro. A solidão dela não é solidária, como fica evidente em “Escolha esquerda”, texto de maior fôlego do livro. Ela sai de casa (“enlouquecida”, “briga horrível”) e vai viver entre pessoas em situação de rua, mesmo com “medo da noite assim desabrigada e nojo das baratas-dinossauros chegando”. Então, “enrugou a noite naquele banco de consolo e também porque os três andarilhos ainda cresciam para seus olhos se precavendo”. A certa altura, a narradora se pergunta: “Como construir um mundo em cima d’outro caído de dor?”. Acaba por afeiçoar-se “à dor da dor”. Na convivência com os sem-teto, percebe que “o novo é sempre medonho”. Contudo, há alguma esperança: o texto dialoga com Drummond de “A flor e a náusea” (A rosa do povo, 1945).
“Fantasma de agouro do amor”, curto e cruel, talvez seja o mais doloroso conto desta coletânea. Num ritmo de canção, eco algo distante (ou próximo?) de “A banda”, de Chico Buarque, vamos saber o que acontece na última tarde da disciplinada Marushka com sua paixão, Petro, uma pedra.
Logo a seguir, outra história triste, “Delicadeza”, bem triste, repleta de delicadezas, como os “olhinhos cabeça de alfinete” de um personagem; “um distúrbio escondido no porão do olhar”; “pensou junto que a porta pudesse ventilar alegria para seu fundo triste”; “a chuva ficando fininha como assobio”; “era incontível seu caldo de alegria”. Uma penosa busca de voo inalcançável.
O impossível parece acontecer, a dor se aprofunda em “As horas de atravessar”. Em tom de fábula, nesse conto Alexandra d’Orsi recolhe Anastácia a um orfanato até a personagem se afundar “num charco de alheamento, intumescido de abandono”. A escritora se inspirou num poema de João Cabral de Melo Neto para escrever “De onde vêm flores”. Nesse conto, “a primavera pulava em tudo”. Ali existem também dor e tristeza.
Resta abordar alguns textos (nem todos foram citados aqui) para mergulharmos nas histórias dolorosas e bonitas de Dos meridianos de Eva. Dois deles: “Carinho ela nem teve ou De amar jovem” (“Ah, o amor tem uma batalha de gordas diferenças com paixão!”) e “Sem por onde”, conto acerca de “espancamento, punição e fome” de crianças. Fecha o volume “Conto parecendo posfácio” (“toda história esconde uma chave”). Além da assonância com Clarice Lispector, o texto de Alexandra lembra algo de Guimarães Rosa, mas o que sobressai aqui é um estilo novo, próprio, original, que harmoniza com um novo sopro criador o que a escritora bebeu de seus mestres prosadores e poetas. Dos meridianos de Eva é um sonho doído e luminoso que vai perdurar na literatura brasileira.