Luís Giffoni tem 27 livros publicados, entre romances, contos, crônicas, teatro, ensaio e literatura para jovens. Recebeu alguns dos mais prestigiosos prêmios literários nacionais. Dedica-se, há quase trinta anos, à divulgação da importância da leitura para o bom funcionamento do cérebro. Participou de feiras do livro e proferiu palestras no Brasil e no exterior. Curte longas caminhadas e os seis netos. Pertence à Academia Mineira de Letras.
Michel Morlet Pereira e Soraya vivem intensamente, guiados pelo desejo de liberdade e prazer. Entre hotéis cinco estrelas e pensões compartilhadas, exploram paisagens remotas e mergulham nos costumes locais. Michel, descendente de franceses e portugueses, ama Soraya com paixão verdadeira, embora a traia ocasionalmente. Em Cusco, o reencontro com sua irmã Sophie e o amigo Mark, matemático de Cambridge, desencadeia uma série de tensões: Soraya se envolve com Mark durante a ausência de Michel, que reage com indignação.
A viagem segue para La Paz, onde os três são assaltados por filhos de uma lutadora de wrestling boliviana. A fuga os leva à polícia, mas o chefe local, antigo parceiro do pai de Michel em contrabando de armas, transforma os brasileiros em reféns. Na tentativa de escapar, o trio escala o Huayna Potosí. Durante a subida, Michel hesita em matar Mark após um acidente, e apenas ele alcança o cume, onde vive um momento de revelação espiritual.
Ao retornar, Soraya anuncia sua partida com Mark para a Inglaterra. Michel, tomado pela dor da perda, enfrenta o vazio deixado por um amor que não soube preservar.
michel alcançará os cumes para desafiar os deuses: ele carrega armas de calibre, a filosofia e a juventude,
lá no alto, tudo é tão lívido, tão claro, um esplendor irrefreável e, atordoado, o homem submerge em si e descobre a impetuosidade de todos os paradoxos:
a vertigem do ciúme, o vigor da natureza, a imperturbável fragilidade humana, pulsão e agonia tornam a se digladiar, um vazio sereno gotejando a peçonha das contradições, a vingança, o medo, as peripécias sem sentido da existência,
a igualdade não é branca: após a extenuante subida, michel estabelece que tem o direito de vencer: na aridez cândida do pico, a vista tenta capturar a vastidão andina dos altiplanos,
juntos e derrotados, os amigos se submetem aos bálsamos do hedonismo, sucumbem à imponência glacial de uma nova aventura: amam e perdem, desafiam o voo passageiro da carne, o deslumbrante balé da utopia,
uma quimera alimentada por corrupções: e o espírito com isso?, michel é uma alma perturbando o silêncio monumental do illimani, na bolívia, mas o corpo exige os exageros do corpo, o corpo, um colossal depósito de excessos e autoenganos bancados por um pai moralista, burocrata, corrupto, e uma irmã condescendente,
até que uma chantagem supere o mecanismo das aparências e michel se curve, provisoriamente, às convenções:
lá em cima, a brancura asfixia tudo que é humano, com a sanha estruturada e paciente de um ecossistema belicoso: diante dessa selvageria imprevisível, os ruídos da solidão anunciam homens engendrados na bigorna do medo,
linha de neve, de luís giffoni, tensiona a linha invisível, mas presente, separando universos antagônicos, que se entrelaçam, revelando paradoxos: rocha e gelo. planejamento e acaso, instinto e razão, transcendência e desejo, crença e ceticismo, vulnerabilidade e força,
lá em cima, deus falha, se esquiva, expõe a precariedade da imagem e da semelhança: é quando michel descobre que a maior dissonância de todas é a que carrega dentro de si – e ela é definitiva.
Um romance remete de imediato a viagens, imaginárias ou reais, do corpo ou da mente de pessoas errantes em busca de descobertas, encontros improváveis ou imprevisíveis. Sempre. Com este Linha de neve o leitor tem em mãos um passaporte quente para uma jornada inesquecível. Não apenas por países andinos, em trilhas e escaladas arriscadas e outros perigos, mas sobretudo pela instável alma humana, seus sonhos e pesadelos, e pela atormentada vida contemporânea. Hedonistas em alto grau, sedentos de prazer a qualquer custo, Michel (“Michelosaurus desvairadus”; “um poeta, no sentido pejorativo que seu pai lhe dava”) e Soraya (“colega de bairro, de escola, de viagem, de tesão”) dividem com o amigo irlandês Mark (“matemático e remador”, vértice do triângulo amoroso) momentos febris de aventuras, venturas e desventuras, loucas enrascadas, neste avassalador, denso, lírico romance. Que ninguém procure plena verossimilhança com a vida cotidiana, ainda que em parte a fonte seja a realidade.
Na literatura, o que se exige é plausibilidade com a história narrada, uma história que cative e convença o leitor. Em As históricas entrevistas da Paris Review (Companhia das Letras, 1989), Gabriel García Márquez (1927-2014) disse a Peter H. Stone (tradução de Cecília C. Bartalotti): “Em jornalismo, um único fato falso prejudica todo o trabalho. Já em ficção, um único fato verdadeiro dá legitimidade ao trabalho inteiro. Um romancista pode fazer qualquer coisa que queira, contanto que faça com que as pessoas acreditem”. Escritor experiente, de carreira consolidada e várias vezes premiado, Luís Giffoni sabe bem disso. A lição de García Márquez vale também para quem não cultua o realismo mágico.
Desde as primeiras linhas deste romance surpreendente, o escritor nos arrebata com as ricas e poéticas descrições de paisagens e espaços por onde transitam os personagens, metidos em relações perigosas, em diversos campos. Quando o real e a imaginação se completam em harmonia, o resultado é arte. É o que este livro nos oferece. E surpresas. Muitas, inúmeras, incontáveis, a cada episódio e virada de página. “A arte é uma invenção, e seria ridículo julgar a aventura em nome da ordem”, escreveu Gaëtan Picon (1915-1976) em O escritor e sua sombra (tradução de Antônio Lázaro de Almeida Prado; Companhia Editora Nacional/Editora da USP, 1969). O crítico de arte e literatura francês completou: “Lemos as obras para amá-las, e não lemos indiferentemente a quaisquer obras: nada deveria prevalecer contra a realidade dessa experiência”. Mas ressaltou: “A obra de arte – e, de modo particular, a obra literária – não se nos impõe apenas como um objeto de fruição ou de conhecimento; oferece-se ela ao espírito como objeto de interrogação, de pesquisa, de perplexidade”.
Com notável versatilidade, Giffoni trabalha com segurança em vários registros e níveis narrativos, sempre com fluidez e apuro literário, seja nos diálogos precisos, enxutos, vivos, seja em trechos em primeira ou terceira pessoa de monólogos ou descrições primorosas, cenas cinematográficas. Tudo em comunhão com os episódios narrados e com a índole dos personagens, todos esféricos – contraditórios, complexos como seres humanos reais. Não apenas os protagonistas, mas também cada personagem considerado secundário, aquele segundo essencial que deixa pistas do percurso, passado ou próximo, dos principais. O leitor perceberá a maestria do romancista nessas passagens à primeira vista sem importância no enredo.
“Para formar cidadãos críticos e independentes, difíceis de manipular, em permanente mobilização espiritual e com uma imaginação inquieta, nada melhor do que bons romances”, afirmou Mário Vargas Llosa (1936-2025) como parte da resposta à pergunta do seu ensaio “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?” (A cultura do romance, org. Franco Moretti, tradução de Denise Bottmann; Cosac Naif, 2009). Acrescentou: “Não a ciência, mas a literatura foi a primeira a examinar os abismos do fenômeno humano e a descobrir o apavorante potencial destrutivo e autodestrutivo que também o conforma”. O autor de A guerra do fim do mundo (1981) arrematou: “Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante grave, alheio à paixão e ao erotismo, o mundo sem romances, esse pesadelo que procuro delinear, teria como traço principal o conformismo, a submissão generalizada dos seres humanos ao estabelecido. Também nesse sentido seria um mundo animal”.
De fato, ao longo de sua história, desde Dom Quixote (1605) de Miguel de Cervantes (1547-1616), o gênero romance é reconhecido como fonte de múltiplos saberes e funções. Ao mesmo tempo em que diverte, estimula a imaginação, conscientiza e enriquece o espírito, também ensina, como sublinhou Liang Qichao (1873-1929) em Yinbibgshi he jí, obra publicada em Xangai em 1916, citado por Henry Zhao em A cultura do romance: “Quando é impossível ensinar os clássicos aos leitores comuns de escassa cultura, ensinai-os por meio do romance; quando é impossível ensinar a historiografia, ensinai por meio do romance; quando é impossível ensinar a filosofia, ensinai por meio do romance; quando é impossível ensinar o direito, ensinai por meio do romance”.
Ainda no monumental A cultura do romance, volume de mais de 1.100 páginas, Walter Siti afirma que a ficção pode exprimir uma verdade mais profunda do que a banal, “não a verdade dos fatos, mas a dos desejos”. Ele cita o Marquês de Sade (1740-1814) de Considerações sobre os romances, edição publicada em Milão em 1992: o dever do historiador é o de mostrar-nos o homem como é ou como parece ser, o do romancista é mostrá-lo a nós “mas como pode vir a ser, como podem modificá-lo o vício e as várias urgências das paixões”.
Como o leitor verá, Luís Giffoni abriga tudo isso e muito mais em Linha de neve. Sua clava é forte. Termo-chave: paixão. Suas origens, práticas e consequências. O romance vibra em alta-tensão, em conexões arriscadas no plano pessoal, na esfera pública, nas questões socioeconômicas (fica evidente a posição do protagonista), e em todos os meandros da existência humana, da ilusão de poder e da inescapável fragilidade humana. Nessa viagem alucinada, Michel, Soraya, que ele soletra “So-ra-y-a”, à maneira de Humbert Humbert, no romance Lolita (1955), de Vladimir Nabokov (1899-1977), e Mark descobrem quem são. Mas não se importam com isso. O que os liga é a urgência das paixões, a sede de sexo.
Espaço de controlada anarquia criativa, em que pessoas se cruzam em seus labirintos e desembocam sempre na dor, após fugazes momentos de prazer e alegria, romance não é paladino da moralidade. Expõe as mazelas do corpo e do espírito, mas com a garantia de fruição estética, senão não é arte. As palavras têm sexo, se atraem, nos lembra Machado de Assis (1939-1908); o casamento delas é o que o autor de Dom Casmurro chama de estilo (“O Cônego ou Metafísica do Estilo”, Várias Histórias, 1884).
Com um texto ágil, sem deixar de ser por vezes suntuoso, plástico, Luís Giffoni faz Linha de neve transcorrer em estado febril. E não há dipirona nem beladona que façam baixar a temperatura acima de 40 graus de excitação a tecer a teia de desejos do trio de viajantes, e nada turba a delícia da leitura deste romance. Anima a história um permanente estado de êxtase e medo dos personagens, eros e thanatos lado a lado (“Acaso, gelo, rocha, céu, vales, precipícios, vida e morte. E inferno”), às vezes a mais de 6 mil metros de altitude (“o deleite das alturas”) em picos a 15 graus abaixo de zero, abismos a assombrar os destemidos turistas-alpinistas, ou em noitadas em hotéis de luxo ou precárias pousadas e suas ameaças latentes. Conhecem também um trajeto de Macondos, “onde o fantástico convivia com a realidade, um sem perturbar o outro”.
Numa situação de extremo risco na Bolívia, Michel descobre a origem da fortuna de seu pai (“Paz é bandido”, “fuja, agora”) que lhe proporciona intermináveis viagens por onde quiser, seja para estudar filosofia na Inglaterra ou nos Estados Unidos, ou vagabundear pelo mundo. Descobre ainda tenebrosos segredos da família. Seus guias, contudo, são sempre os epicuristas. Ele não dá a mínima à lição ouvida num monastério budista no vale do Rio Indus: a virtude mora no caminho do meio. O que mais acontece com os libertinos Michel, Soraya (“pão e dor. Cárcere do prazer”) e Mark? Boa parte da história um prefácio não deve revelar. Não se pode tirar do leitor o sabor das descobertas. Mesmo porque um grande romance, sabem muito bem leitores de alta literatura, não se prende ao enredo, à história.
“Como nos engana, em sua pobreza, o resumo – um tanto frio ou monótono – do enredo!”, lembra o narrador e personagem de A rainha dos cárceres da Grécia (1976), de Osman Lins (1924-1978). A opinião do personagem reflete a do autor: resumir um texto literário é “prática superficial, difunde e reanima a ideia corrente segundo a qual a história é o romance, não um de seus aspectos, dos que menos ilustram a arte de narrar”. Bons autores e leitores não se deixam enganar. Sabem que, além do enredo, integram as conexões secretas de um romance os personagens, o espaço e o tempo, a estrutura, a linguagem e suas figuras, o estilo.
Quem leu Os rios profundos (1958), de José María Arguedas (1911-1969), talvez note alguma semelhança entre o belo início deste Linha de neve (“tridente de pedra e gelo com seis mil e quinhentos metros de altura”) com um trecho do romance do escritor peruano (“três cumes nevados que se erguem sobre uma cadeia de montanhas de pedra negra”). Os dois romances nada têm em comum, fora o espaço e o horizonte. Conheça ou não o livro de Arguedas, Giffoni leu a mesma exuberante e paisagem da Cordilheira dos Andes. Como aperitivo, um trecho do romance:
Michel estava tão imerso na paisagem que, ao saltar sobre o abismo, sedado pela beleza do nascente – e também pelo cansaço –, não percebeu o perigo da queda vertical com quase um quilômetro, terminada num emaranhado de calhaus pontiagudos. Sentia-se leve, capaz de flutuar. Acreditou que de fato voou. O voo que buscava. Não com a brevidade de um corpo que cai sobre a Vieira Souto, mas com a permanência de um pássaro que paira. Un pájaro. Kotori. Picaflor. Beija-flor. Que despreza a gravidade. Que se confunde com o espaço. Que se espalha na manhã. Que engole o horizonte. Que poderia ir ainda mais longe. Que ignorava o limite humano. Que virava ar. Que se incorporava ao mundo. Que era o mundo.
Com a devida vênia (epa!), uma citação sem autoria segura. Acredito, contudo, que seja de algum livro, artigo ou entrevista (que não consegui localizar) do professor e crítico João Alexandre Barbosa (1937-2006). “Todo romance tem algumas páginas admiráveis. Alguns, todas.” O leitor há de concordar: este é o caso de Linha de neve.