Whisner Fraga nasceu em Ituiutaba, MG (1971) e atualmente reside em São Paulo. Formado em Engenharia Mecânica, Pedagogia e Marketing Digital, é professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo Crônica do dia e mantém o canal Acontece nos livros, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.

AS FOMES INAUGURAIS

 

as fomes inaugurais é um livro sobre histórias invisíveis que habitam as ruas. São 55 minicontos sobre personagens que se acostumaram a viver à margem de uma sociedade que não tem interesse em acolhê-los. A habilidade de Whisner Fraga de se aprofundar na superficialidade criadora de cenários caóticos é imperativa. O autor se vale de diversos recursos de estilo, entre eles o realismo mágico, fluxo de consciência, narrativas em terceira e primeira pessoas. Também se volta à linguagem do teatro, a profundidade da poesia. Em elementos de romance, não raro aparece Seu Manuel, dono de um bar, e Helena, sempre dialogando com o narrador, ambos personagens presentes em vários minicontos. Em as fomes inaugurais, mulheres em situação de rua buscam dinheiro em lives eróticas, recolhe-se párias para um shopping center maravilhoso, uma mulher grávida prefere morar na rua a voltar para o Nordeste, uma família que mora em um carro abandonado começa a adaptá-lo para transformá-lo em uma casa. O que torna esta obra singular é o fato de o autor abordar temas tão delicados sem romantizá-los.

 

Por Hugo Almeida
Cântico aos excluídos

 

O que a ficção tem a ver com a vida? Tudo poderia ser uma resposta; quase tudo, outra. Cada leitor terá a sua. Contudo, uma coisa é certa: a ficção nasce do cotidiano e da história, do que o autor vive, sente, vê, ouve ou sonha. A raiz de uma obra literária reside nessa origem, como os leitores puderam notar nos contos deste as fomes inaugurais, de Whisner Fraga. O escritor viu, ouviu o que narrou neste livro, ou soube de alguma forma, por relato de terceiros ou talvez até tenha imaginado. Em todo caso, não se pode negar: o que ele escreveu aqui e em seus outros livros nasceu do real, da vida pulsante do dia a dia. E de que lado está um verdadeiro escritor? O papel dele é denunciar desvios e desumanidades, com apuro literário. Não é outra coisa o que Whisner faz, atento que sempre esteve e está às mazelas do mundo. Ele denuncia com arte as injustiças sociais, e manifesta irrestrita solidariedade aos excluídos do desfrute de bens e serviços da chamada civilização. Essa a marca de seus livros.


Vejamos o que a filósofa Marilena Chauí disse em entrevista ao jornalista Leandro Demori, no programa Dando a Real com Demori, da TV Brasil, em 5 de novembro de 2024. Ela foi enfática: “A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária, violenta, hierárquica, discriminadora. [...] Vivemos numa sociedade hierarquizada, dividida, segmentada, movida por preconceitos e violências e que tem num horizonte muito distante a noção da importância dos direitos, os direitos sociais, os direitos cívicos, os direitos culturais”.


O leitor deste as fomes inaugurais há de concordar: os contos de Whisner Fraga são exemplos patentes do que Marilena Chauí denuncia. Já no primeiro miniconto, “o apetite relutante”, foi instalada, evidenciada, a exclusão. Começou o cântico dos excluídos. Quem são eles ali, quantos? Um casal, dois homens, um grupo? Nós, leitores, começamos a participar da criação, a preencher as elipses. Expulsos da calçada e de outras exiguidades, os personagens, gente de carne e alma como todos nós, se instalam no canteiro central da avenida, na esperança de que ali possam permanecer. Até quando?, deve pensar o leitor solidário, com palpitações e respiração alterada, antes de prosseguir, antes de topar com outros apetites não saciados, são sete os apetites que iniciam o volume, relutante, incorruptível, dispendioso, imaculado, etc., até “o apetite ecumênico”. Whisner Fraga não deixa dúvida do que o move, o motivo pelo qual escreve, o que pretendia com este novo livro, a exemplo dos anteriores, como usufruto de demônios (2022) e usufruto de ruínas (2023): denunciar a desigualdade socioeconômica, sem contudo dispensar o apuro estético. 


No segundo miniconto, “o apetite incorruptível”, o leitor encontrou com quem dividir a angústia, Helena, interlocutora do narrador, presente também em outros livros do escritor. Aconteceu comigo e, não tenho dúvida, também com muitos, ou todos os leitores dessas “fomes”: foi impossível manter a respiração no ritmo normal. Idem, o batimento cardíaco, alterado pela impiedade à luz do dia e do poste da noite. A luta continua.


A solidariedade do narrador e de Helena é barrada pelo “apetite dispendioso”, pela chuva na avenida-símbolo da desigualdade. Haja fôlego e bomba no peito. Nesses contos iniciais, a série de apetites, cristaliza-se uma amostragem deste volume de agonia, aflição, de abandono, de falta de amor ao próximo na maior metrópole da América do Sul. Não existe pecado abaixo do Equador. 


A questão social é, sempre foi e será chave na literatura. E o que é literatura? No ensaio “O direito à literatura” (Vários escritos, 3ª edição, São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 242), Antonio Candido (1918-2017) expõe seu conceito: “Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações”. 


Na página seguinte, Candido lembra que “talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”, uma vez que ela “é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade”. E pouco depois: “Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”.


São incontáveis esses problemas, no Brasil ou qualquer parte do mundo, em graus diferentes. Na difusão dos produtos culturais eruditos, observa Antonio Candido nesse ensaio de leitura indispensável para todo escritor brasileiro, nosso país “se distingue pela alta taxa de iniquidade, pois como é sabido temos de um lado os mais altos níveis de instrução e de cultura erudita, e de outro a massa numericamente predominante de espoliados, sem acesso aos bens desta, e aliás aos próprios bens materiais necessários à sobrevivência” (p. 262). 


Em outro de seus incontáveis ensaios essenciais, “O escritor e o público” (Literatura e sociedade, 7ª edição, São Paulo Editora Nacional, 1985, p. 74), Candido observa que a literatura “é um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a”. Deixa claro que “dois termos atuam um sobre o outro”, a obra e o leitor, “aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo”.


Voltemos aos minicontos deste inquietante as fomes inaugurais. Em “o apetite imaculado”, os desvalidos incomodam os proprietários de apartamentos do condomínio nas alturas. Desobstruam a rua, a calçada, a nossa visão. Pouca-vergonha, nenhuma prevenção, vão se multiplicar, a prefeitura tem de dar um jeito. Whisner escreve para leitores sensíveis e atentos também sobre os distúrbios da mente da elite insensível, soberba, orgulhosa. Ele capta o som e a dor ao redor. A dor do próximo espeta a sensibilidade do contista, que busca despertar a solidariedade do leitor.


O que alguém leva, à guisa de alimento, a um dos excluídos, na noite fria, não passa de um escárnio para o leitor solidário, aquilo não é comida de gente. Como em vários contos, a maioria, o fecho é um susto, o soco do nocaute da receita cortaziana. Há mais, muito mais, como percebeu o leitor que atravessou, sem fôlego e com taquicardia, as páginas anteriores até aqui. O gesto de caridade cristã, de pão e afeto, foi gravado por alguém não muito distante como se registrasse a prova de um crime. 


Nessa gangorra, nesse vaivém de bondade e compaixão, de certos personagens, e de perversidade e insensibilidade de outros, Whisner Fraga não deixa escapar o desrespeito, o cinismo, como em “a desonra”, de alguém, uma personagem, que simulava um gesto de piedade. “…nada se consegue com o ódio; nem com a tirania, a injustiça, o assassínio, a brutalidade, a corrupção da alma humana”, escreveu numa reportagem sobre guerras, há quase cem anos, Ernest Hemingway (Tempo de viver, Civilização Brasileira, 1969, p. 275).


O que o escritor fez desfilar diante de nós, como viu o leitor desses contos, foi um filme atual da exclusão dos desassistidos, párias de uma sociedade egoísta e cruel. No entanto, o bom leitor há de ter percebido, o autor a tudo imprimiu um toque de poesia, ainda que dolorosa. A denúncia, o valor ético, lado a lado com o esmero estético, marca de todo grande escritor. Não poderia ser diferente, o contista dessas fomes inaugurais iniciou a carreira literária com a publicação de poemas. Se, na forma, Whisner não publica mais poesia, na essência segue poeta na prosa, no texto lapidado, no ritmo seguro, de equilíbrio, elementos poéticos parentes da narrativa. 


O leitor terá observado a extensão contida dos contos, de contadas linhas, minicontos que são, nunca os nanocontos tão em voga, coisa de uma ou duas frases cortantes, nem sempre suficientes para cumprir o propósito literário, apenas o da contenção. Ao contrário, os contos de Whisner são sementes de histórias que crescem na imaginação do leitor, e os inquietam. No conjunto, não deixam de compor uma história maior, fragmentada na divisão dos episódios curtos, peças a montar o quebra-cabeça de uma novela ou quase romance, se o leitor assim o quiser, mesmo que cada texto tenha identidade própria. Inquieto, o escritor é dotado de forte, viva, “pulsão narrativa”, na expressão do professor João Alexandre Barbosa (1937-2006), no ensaio “Os intervalos de Eça de Queiroz” (A biblioteca imaginária, São Paulo: Ateliê Editorial, 1996, p. 123). 


Como o próprio autor afirma no Instagram: “Literatura, como arte, é transgressão. Significa chegar a lugares até então inexplorados e isso só é possível com muito trabalho, com uma compreensão profunda dos limites e possibilidades da linguagem. A matéria-prima da ficção é a palavra”. Seu texto surpreende o leitor a cada conto, a cada linha. Alguns exemplos: “a kombi ejeta os funcionários uniformizados” (conto “efetividade de ineficácias”); “emborca um gole, me vem, com o fato, uma ganância indócil” (“solidariedade”); “o velho reage, me cata pelo colarinho, babando” (“paternal”); “os ferimentos expõem a arritmia da incoerência” (“pernicioso”). Essa é apenas uma amostragem, incontáveis que são as frases primorosas, fortes, e também os títulos dos minicontos; beleza e crueldade juntas.


A poesia paira em “desafinar o ruído”: “cachoeiras incessantes, canções, chilreios, ronronares, guinchos, roncos, grasnados, relinchos, batidas, correntezas, e, surpreendentemente, o silêncio”. De “ratos alados”, uma das várias obras-primas do livro: “polvilha farelos de pão no boné, na camiseta, nos sapatos, os pombos empoleiram [...] um balé fortuito ascende no canteiro”. Quem não se arrepia com o destino desse um São Francisco contemporâneo?. Alguém ainda não sabe que uso da palavra faz um escritor? 


No romance A rainha dos cárceres da Grécia (São Paulo: Melhoramentos, 1976), de Osman Lins (1924-1978), o professor-narrador inominado se compromete “com a nomeação das coisas e com as coisas nomeadas” (pp. 57 e 58). Abel, personagem e narrador de Avalovara (São Paulo: Melhoramentos, 1973), condena a indiferença: “Preciso ainda saber se na verdade existe a indiferença: se não é – e só isto – um disfarce da cumplicidade. Busco as respostas dentro da noite e é como se estivesse nos intestinos de um cão. [...] Ouço: ‘A indiferença reflete um acordo, tácito e dúbio, com os excrementos’. Não, não serei indiferente” (p. 354).


O narrador whisniano, versátil, não faz concessões, é às vezes cruel, incorpora a maldade de certos personagens, como no antológico “adiabático”. Retrata com cores fortes, vivas, a angústia dos excluídos, sem liberdade para nada, por exemplo, em “revigorar o pânico”, mais um conto antológico, entre vários outros, cada leitora ou leitor fez a sua antologia pessoal. Em alguns contos, Whisner Fraga se aproxima do ensaísta (“brasões, flâmulas, insígnias” é um exemplo), sem perder o tom de ficção e poesia. É preciso repetir, não se pode esquecer: o verdadeiro escritor tem lado, defende a justiça social. Qual o segredo do escritor? De que se constitui a carnadura do seu texto? Sem rupturas, sem vestígio de costura ou solda, Whisner concilia verbo e gesto. Dor e brisa. A palavra justa, no lugar exato, sempre de uma maneira original, sintaxe inusitada. Ninguém escreve feito o autor de as fomes inaugurais. Seu estilo não lembra o de ninguém. Poderia haver mérito maior em um ficcionista? Whisner Fraga é um dos mais vigorosos e criativos escritores brasileiros em atividade.