o que o poeta tem a declamar após o coma?, o moto perpétuo da realidade lhe roubando o devaneio e impondo, brutalmente, as sequelas?, o poeta ainda conseguirá criar?, esmiuçará os traumas universais em versos engenhosos?, voltará a escrever?, é imerso nesta angústia, que milton rezende, tateando os aromas da dúvida, tenta recomeçar a tecer uma obra, ainda que o corpo vacile diante da monstruosa tarefa de continuar, é preciso purificar a palavra, em um ato íntimo de desafio: o poeta está afiadíssimo: içou a ironia pelo colarinho, domesticou a dor rediviva, a morbidez da inconsciência, até encontrar lovecraft, até se refugiar em heróis oníricos, fantasmagóricos e, ainda assim, reais: a suspensão da existência, os olhos reavendo outras ficções até desembocarem novamente na trégua, reimaginarem as banalidades cercando a resistência que pulsa, essas águas que jamais foram as mesmas, nunca serão, o líquido ocupa tudo, com seu curso que invade, pilha, toma, ocupa: o poeta tomará quantos remédios por dia?, quantos comprimidos empurrados corpo abaixo?, o poeta regressará às burocracias de antes?, quanto tempo resta antes de se revoltar, novamente?, porque trouxe os vestígios de outra cosmogênese, serenada pelo conforto de fármacos, de injeções, de terapias, uma lista de enfermidades e procedimentos tão absurda que trazem em si o embrião da poesia, o lirismo da incongruência, como enxergar de outra forma o que sempre foi caos?, o médico lhe revelará a intimidade de uma paz sem serventia?, milton rezende aflora às margens de um mundo idílico, transmutado, inacessível e se insurge contra ele com sua realidade brutal, desesperançada, empunhando palavras aceradas, como se só lhe restasse isso a fazer: a arte é um fardo.