poesia
Em todas as leituras do poeta sobre ela, há inquietação, mas também alento diante do imutável que a tal representa: o fim fragmentado em uma variedade de ocorridos, até chegar ao desfecho inegociável.
Apesar de ser o destino de todos, a morte como acompanhante de vida não é para todos. Observá-la — nas versões realística e metafórica — exige certa afinidade com um dos temas mais evitados pelo ser humano. Refletir e falar sobre a finitude de si raramente colabora com o aprofundamento no assunto. Melhor é fazer de conta que ela não chegará.
Evitá-la não faz parte desta obra.
Aqui, Milton Rezende navega feito barco solto nas águas da cadência desse fenecimento, recorrendo, mais uma vez — por serem temas presentes na sua literatura —, aos cemitérios e rituais de passagem, inspirações significativas para a sobrevivência da vitalidade e da clareza, itens essenciais para manutenção de seu acervo de observações existenciais. E vai além, registrando em poesia algumas facetas da morte e a diversidade de fins que ela orquestra, o que resultou em alguns poemas baseados na experiência do autor, após uma cirurgia mal sucedida, que deixou sequelas “definitivas e permanentes”.
É nessa força de lidar com o que debilita que o poeta transcende o físico para abraçar a combinação de palavras guiada pela nostalgia: “... mas ainda dono das minhas pernas / agora atrofiadas pelas cirurgias malfeitas / que fizeram com o intuito de retirar-me de cena /e ironicamente, hoje, me permitiram um passeio / nostálgico para que eu lembrasse de estar acabado” (O inabalável homem de pedra, dentro de sua cela, observa).
Por meio dos poemas, Milton deixa claro sua temeridade ao se aprofundar, seja nas emoções, nas elocubrações ou nos fatos. Por meio de versos coordenados com o que pensa, sente e observa, aproxima-se da vulnerabilidade do ser humano e das prateleiras de remédios. Flerta com o inimaginável e a reverberação da realidade: “por precaução levava meu kit básico / de sobrevivência: órteses, próteses, / cadeira de rodas e cadeira de banho / para alguma eventualidade de lavar / o corpo dos pedaços que se decompunham” (Chapado de Zolpidem 10 mg). Em “Eutanásia II (pentobarbital)”, aborda a vida no descabimento de sua duração, quando as circunstâncias são desoladoras. Ainda assim, Milton versa sobre desejo e possibilidade: “queria morar na Suíça / onde o suicídio assistido é permitido / então eu iria me inscrever”.
Em alguns momentos, o poeta se entrega à fragilidade de quem tem de lidar com limitações físicas significativas, e de condições que interferem na capacidade de enxergar alívio no cotidiano: “Estar invisível / é ir-se apagando / aos olhos dos outros. / Ser uma memória / antiga que ninguém / se lembra mais” (Balada do homem invisível).
Da essencialidade da água coloca a poesia de Milton na estrada da compreensão dos movimentos que a vida faz antes de a protagonista do fim assumir seu papel. Há sentimentos e fatos que se afogam em dúvidas e beleza nas entrelinhas. É vivendo que o poeta contempla a morte.
Aqui tem poesia, mas não amarras. A leitura dos poemas deste livro provocará em muitos o desconforto gerado por questionamentos relacionados às prioridades; o reconhecimento de mazelas e de fragilidades; o escarnecer a perfeição. É no susto, no corte, na necessidade que o poeta tece a sua poesia. É assim que, na morte, a vida grita.